quinta-feira, 24 de abril de 2014

Viagens III

"A compreensão de outrem somente progredirá com a partilha de alegrias e sofrimentos."  - Albert Einstein


Vou para o nosso 3ºencontro, ou melhor 9º... Não minto, o medo mantém-se.  Ainda agora (2 meses depois) ao pensar na possibilidade de voltar lá sinto um nó a querer formar-se no meu estômago. É essa forma de energia, de algum modo essencial à sobrevivência, que tenho encontrado bastas vezes na minha vida, mas agora, cada vez mais consciente da sua presença... o que me tem permitido, conscientemente, contorná-lo ou atirar-me de cabeça.


14.02.2014

Sobre a intenção...

-"Não sei... (olha como começo...isto já diz muito...) sinto que tenho muita coisa cá dentro, umas boas, importantes e que podem ser muito poderosas e úteis e outras que não servem para nada, só atrapalhar. Mas não as consigo tirar cá para fora. Custa-me muito expressar-me verbalmente, ideias, emoções...

- Mas expressas-te bem pela escrita, isso é bom, é uma maneira... e se calhar és assim mesmo. (...)

- Mas acho que também era importante para mim conseguir falar com as pessoas... sinto-me meia desorientada... estou cheia... mas sei que em breve vou sentir vazio e não saber para onde me direcionar. Mas não sei o que pedir, se calhar é mesmo melhor, como aconselhaste, pedir-lhe para me ajudar no que for prioritário para mim agora, porque eu francamente não sei o que é.

(...)

-Mas estás diferente... não só o cabelo, algumas coisas quando vão ter com a tua antiga pessoa já não a reconhecem e não ficam. O cabelo está muito relacionado com os pensamentos.

-Então era melhor andar de cabeça rapada! :)

-Não, há pessoas que têm de andar sempre com o cabelo direitinho, esticadinho... tu não, isso significa que aceitas o caos."

Fica uma pergunta retórica a bailar-me pelos caracóis: "Aceito o caos... e isso é bom??"


11:30h
Purga de tabaco - "O tabaco é uma cura por si só, limpando o mental e vias respiratórias. Elimina o excesso de informação e facilita o trabalho da madre. É a planta iniciática mais importante do mundo."

Um copo de vidro cheio, beber o mais rápido possível. Depois, beber cerca de 2L de água morna, rápido... "como se estivessem num deserto". Sinto o estômago a rebentar, acho que nunca o senti tão cheio! Esta sensação só vai passar quando vomitar... mas ele não vem. Não tenho o hábito de beber muita água e quando o faço é fresca... agora morna ainda torna o sacrifício maior! Forço-me a beber mais um pouco, pelo menos aqui tenho o poder de acelerar o processo. Um mosquito afogou-se na minha água morna. Bebo. Chego a um ponto que não me interessa se o engolir, vou purgá-lo, intacto. Aí vem... toda a água que bebi, mais o tabaco e toda a informação desnecessária, espero. Tudo para dentro do vaso branco, desta vez fui eu que o escolhi. Enquanto puder ser assim será, um vaso branco para me acompanhar nos momentos mais escuros.

Passeio, durmo, como duas peças de fruta e espero que o Sol se deite...

Ajoelho-me, peço-lhe ajuda e degluto o imprevisível chá. Os efeitos físicos são mais ou menos os do costume. Desta vez resolvo manter os olhos abertos, fixos nas grandiosas árvores que desta vez ficaram mesmo à minha frente. Inicio um diálogo com ela, eu pergunto e, sem ver ou ouvir nada, percebo as respostas na minha cabeça. Diz-me que é o preocupar-me demais com as outras pessoas que faz com que não viva a minha própria vida. Diz-me para eu aceitar o que sinto, aceitar os factos, para eu me amar outra vez. Diz-me para dar só o que tenho para dar e não sofrer por não poder dar o que não tenho. "Foca-te em ti outra vez. Podes atenuar, mas nunca eliminar o sofrimento dos outros". Foi-me dando frases e dicas que me fizeram sentido ora para a vida pessoal, ora para a profissional, ora para ambas. De seguida dá-me como que o golpe final, o golpe que me faz cair e me deixa... K.O. :

"Viciada em emoções fortes". Ah? Desculpa?... Preparou terreno e deu-me uma chapada de luva branca, com um charme incrível. Viciada em emoções fortes? Eu?! Neguei inicialmente, mas não durou muito porque revi-me de imediato naquela frase. Ainda meia boquiaberta fui pensando... "Ok, então tenho de cultivar sentimentos equilibrados como gratidão, amor, compaixão... em vez dos que muitas vezes me têm feito de facto sentir viva como a paixão, tristeza ou de um modo mais agressivo  a raiva, impotência, obsessão e frustração. Olho rapidamente para o historial das minhas relações amorosas e percebo o que me quer dizer, viciada em tragédias românticas.
Explica-me que tenho um monstro dentro de mim (quando o vi, vi-o a viver por cima de mim, nas minhas costas, grande, magro e em tons de roxo, azul e rosa) e que se alimenta das emoções fortes, tenho de o contrariar e ele irá embora. Explica-me que ele não é mau... só não sabe que não precisa de mim para viver, que pode ser auto-suficiente, não precisa de se alimentar do que vem de fora.
Depois de repensar tudo isto apercebo-me que eu não tenho sido puramente EU ao longo dos anos, tenho sido EU, em busca de alimento para o monstro. Penso nas pessoas que usei e de algum modo, inconsciente, manipulei para tirar das suas/nossas histórias emoções fortes para o meu monstro... e o que sofri com isso. Perdoo-me, perdoo o monstro e agora que sei da nossa existência em separado vou tentar transformar a nossa relação de "unha&carne" para uma mais do tipo "primos afastados"...

Seguem-se duas metáforas que não vou explicar porque não é fácil, mas que me fizeram muito sentido...A primeira volta ao encontro da minha necessidade de equilíbrio. A segunda, foi como uma nova revelação e ela denominou-a na minha cabeça como "comportamentos viciados" e deu-me um exemplo perfeito com uma cena recente da minha vida. (Como se numa determinada situação eu antecipasse algo contra a minha vontade só por achar que a outra pessoa com quem estou não estivesse confortável com a situação anterior, mas estava, e eu mudei-a a pensar que não - medo de desiludir? querer agradar a outrem independentemente da minha real vontade? Acho que vai recair tudo na minha falta de auto-confiança.)


Via a minha boca e a minha língua como se fossem de uma cobra e o os meus bocejos como os de um dragão bebé, lilás.

Sinto a presença do meu companheiro de viagem ao meu lado, passámos uma semana diferente e intensa juntos, vai-me custar quando ele se for embora. Uma parte de mim (provavelmente a da péssima auto-estima) sente que se ele ainda está perto é porque o posso ajudar no processo difícil pelo qual está a passar... e sente que quando ele estiver bem partirá. Olho para ele, vão cantar-lhe o ícaro, vejo a pessoa ao seu lado bem focada, sobre ele vejo uma sombra negra que ora aumenta ora diminui. Depois vejo-o na mesma posição mas de tronco nu, numa sala com paredes pintadas de vermelho escuro. Nas suas costas estão pregos espetados, vários, grandes e prateados. Ele está a sofrer, como um guerreiro que aceita o seu destino. Um dos pregos começa lentamente a sair... sai por completo. Não sangra e a pele regenera-se imediatamente deixando só uma pequena cicatriz. Vai custar, mas eles vão sair todos, ele tem de ter paciência.

Volto para o meu diálogo com ela. Olho para as árvores e peço-lhe que me ajude a não sofrer quando nós nos separarmos (quando ele estiver bem e seguirmos caminhos diferentes) e ela só me pergunta: "Preferes amar ou não sentir nada?..." e continua: "É que se a resposta for amar, vêm outros sentimentos incluídos...entre eles algum sofrimento, as mães que amam os filhos também sofrem ás vezes... está tudo incluído, quando escolhes sentir, escolhes sentir tudo." E chorei com ela, senti que ela estava ali para mim a presenciar e perceber a minha tristeza, sem ser preciso dizer nada, com respeito e sem pena emprestou-me o aconchego do seu colo.

No momento do meu ícaro senti pressão na zona do terceiro olho e aos meus olhos a cara do xamã mudava, percorrendo várias personagens que desconheço, mas lembro-me que entre elas havia a de um pirata. ;)


(...)

15.02.2014
Segunda noite... meeedo!! Pedi-lhe cura física e espiritual.
Depois de beber mantive-me calma... primeiro focada na sala, nas pessoas e no cântico em sopro... á espera que ela acordasse devagarinho. Mas não, rebentou, explodiu, entrou de rompante e não me lembro bem como aconteceu. Veio o vómito super rápido e muito forte, sem grande náusea inicial. Não me lembro de ter pegado no vaso. Abri os olhos e via-o desfocado no meu colo, era real? Não? Estarei toda vomitada? Não conseguia perceber. Tentei focar-me no "aqui" sem conseguir, sem controlo nenhum, a ser arrastada de uma maneira forte e arrebatadora (ás vezes para uma espécie de mundo de máquinas preto e branco). Pensei "Tenho de pedir ajuda", mas custa-me, como se alguma coisa me fizesse sentir ridícula ao fazê-lo. "Era suposto eu conseguir aguentar esta turbulência? Tenho de pedir sempre ajuda? Não sei, não consigo pensar, está muito forte." Chamei pela xamã, duas vezes acho, não conseguia perceber se tinha chamado realmente ou se só tinha pensado em chamar, ela levantou-se e foi como se o tempo tivesse andado para trás, "Chamo? Não chamo?" levantei o braço e ela veio ter comigo. Disse-lhe: "Está muito forte", a sentir-me absolutamente ridícula mais uma vez. Cuspiu-me perfume e sacudiu as folhas, acalmou-me um pouco, mas ainda me sentia sem controlo nenhum... acabou e disse que ia para o seu sítio cantar para mim. Foquei-me nos cânticos e na respiração, respirava forte, devagar mas ruidosamente, como se tivesse com uma botija de O2 debaixo de água ou ligada a um ventilador. As minhas pernas dobradas de lado eram como as de um animal ferido a tentar dormir (um pequeno veado?) e sentia uma espécie de "mini-choques-eléctricos" nas pernas que não conseguia controlar. Numa outra fase a xamã voltou e soprou-me e o seu sopro era em tons de castanho e dourado, como se fosse uma terra sagrada.
Nos momentos que se seguiram, estava um pouco mais calma, ainda assim foi tudo muito inconstante. Tinha flashes de imagens de monstros castanhos com dentes afiados sempre que ouvia alguém a vomitar.  Lembro-me de lhe pedir para me ajudar a sentir a felicidade,  sentir a vida... ao qual me respondeu "Como queres sentir mais a vida, se estás em constante contacto com a morte?"  - não estivesse eu ainda meia atrapalhada com o meu descontrolo e iria rir-me da resposta... que faz todo o sentido. Ao ouvir o ícaro achei-o lindíssimo, mas foi como se mesmo tendo consciência da sua beleza a evitasse sentir, porque era grande... e podia transformar-se em alimento para o meu monstro. (Acho que inconscientemente levei a lição ao extremo...)


Num outro momento senti injustiça, raiva... pela maneira como muitas mulheres eram tratadas, desvalorizadas,  por muitas vezes a mulher ficar "atrás da cortina", personagem secundária no palco, a mãe sofredora, a mulher que cria os filhos enquanto toda a gente espera o herói, a história de quem nunca ninguém conta.

Fui acalmando... a luz do luar inundava a sala e com ela parte do meu corpo. Senti vontade de expor o meu ventre e receber através dele a luz da lua cheia. Foi o que fiz. Se na noite anterior ela me tinha feito pensar a hipótese de nunca ter filhos, desta vez fez-me sentir o meu útero como fonte de vida, um sitio sagrado, todo o meu corpo era sagrado.

(O toque, a subtileza do toque... a sensação da pele na pele... a eterna e intensa dança das mãos.)


16.02.2014
Sem náusea... mais uma vez não me lembro de ela aparecer devagar, quando dei por mim... pffff... Apresentou-se como nunca se tinha apresentado. Foi como se nunca a tivesse realmente visto e sentido, como se todas as suas outras formas de se manifestar fossem subitamente abafadas. Uma espécie de cobra/dragão sem asas, mas que voava e eu no seu dorso... inicialmente de um lilás que depois a todo o momento mudava para um espectro de cores inimaginável. Ela estava em mim. Ela era eu. O meu corpo era o dela e o dela era o meu. Parece um discurso de loucos, mas foi algo absolutamente indescritível. Quando fui receber o ícaro custou-me imenso focar-me para me levantar... tinha acabado de ter consciência do que estava a sentir... do que estava a experimentar naquele momento, do que estava a ser! O meu corpo pedia-me para rastejar, não por falta de força... eu irradiava força, poder e brilho. Naquele momento, rastejar teria sido o mais natural para mim. Durante o ícaro sentia o meu corpo, sentia uma corrente de prazer por todo o meu corpo físico e etéreo. E ria-me, e todos os átomos de que sou feita riam-se com tanto deleite. Era como estar possuída por ela, mas sob o meu comando. Inicialmente ainda descontrolada como se tivesse a adaptar toda a sua grandeza ao que sou, mas essa grandeza era minha, essa grandeza e esse poder eram meus. Ao voltar ao meu lugar tive plena noção que poderia saber o que quisesse, qualquer pergunta seria respondida... e vocês perguntam-me "Uau... o que quiseste saber?" ...pois é, fiquei tão atarantada com tanto poder que apercebi-me que não sabia o que queria fazer com ele. E meus caros...o poder assim, pode ser perigoso...não me precipitei, pensei "podias-me mostrar partes da minha vida que não me lembro... mas... se não me lembro, provavelmente vais-me mostrar coisas que já lá vão e não preciso recordar... Podias-me mostrar o meu futuro..mas eu quero saber o meu futuro? Não! Não quero... quero ser surpreendida por ele, venha o que vier...".
Não sabia o que queria saber. Desfrutei de sensações  como que orgásmicas do meu corpo, uma sensualidade e erotismo incríveis. Os meus sentidos super apurados...principalmente a audição e o olfato. Tanto a explorar e deixei-me perder no que havia (lá dentro) à minha volta...paisagens maravilhosas... cores... Tentei pedir-lhe para irmos ajudar alguém no seu processo, mas cada vez que me/nos aproximávamos dessa pessoa as cores escureciam e ficava tudo mais denso... não sei se por medo meu ou por simples impotência "nossa" de interferir num processo alheio, das várias vezes que tentei não avançávamos e voltávamos para a base, para mim.
Esta fase, este poder intenso estava a acalmar... e eu sem saber como o utilizar para proveito próprio...  Visto ultimamente me visitar a ideia de sair do local onde estou e aventurar-me para fora pus-lhe essa simples questão: "Orienta-me... ir ou ficar?" à qual me respondeu: "Para já fica.", como se me mostrasse que não preciso de sair de onde estou para crescer e aprender. Disse-lhe que não sabia o que lhe perguntar mais...e ela disse-me para não me afastar da Natureza, das árvores... e quando as dúvidas surgirem para as procurar, elas iam-me ajudar a ter respostas.

Agradeci, despedi-me dela e voltei para esta minha (nossa) realidade, feliz... porque a verdade é que tinha razões para me sentir feliz, muitas.

Obrigada, uma vez mais a todos os que me proporcionaram esta experiência "surreal"... e a quem me acompanhou nela... de mãos dadas saltar parece mais fácil. *




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