terça-feira, 2 de julho de 2013

Viagens II

30.05.2013

Estou a caminho, amanhã vou ter mais um encontro com ela. Vou-lhe pedir mais uma vez ajuda. Formulei a intenção que levo já há uns meses, mesmo sentindo que estou a melhorar nesse campo ao longo destes tempos...entretanto julgo que muitas coisitas se juntaram e foram acontecendo para me mostrar que eu ainda não estava curada  desse meu problema que julgava já estar a afastar-se...

Houve uma fase da minha vida em que vivi intensamente, amei (poderei chamar de amor?), mas sempre com medo, não consegui ser inteira. Sofri, arrastei-me algum tempo para aprender, finalmente a caminhar por mim em paz, e perceber que isso era possível...conquistei muita coisa..tornei-me numa pessoa mais independente, a apreciar a beleza de estar só comigo, mais confiante....mas ao longo dessa caminhada em que aprendi a estar comigo sem me sentir sozinha, sem eu me aperceber, foi-se construindo uma espécie de muralha á volta do meu coração que só percebi que existia quando alguém sem querer a derrubou. Fiquei exposta, nua, insegura. Tenho de aprender a caminhar de coração aberto.

31.05.2013
Chegou o dia. Só a partir do meio do dia senti o nervosismo chegar. Comboio, mochila ás costas, desta vez sozinha, em busca da quinta perdida. Depois de procurar um bocadinho dou com o nº do portão certo. Uma entrada para uma pequena floresta, árvores de um lado e outro indicam-me o caminho, não vejo ninguém, parece um jardim esquecido, algumas estátuas e coisas em ferro, velhas, parece um sitio esquecido pelo tempo e cheio de histórias para contar. Um espanta espíritos dá-me as boas vindas...mais á frente, a Malloca. Reconheço alguns rostos, estou no sitio certo.

Preencho o inquérito, assumo a responsabilidade e escrevo a minha intenção. Entrego-o, estou ansiosa como já não estava há muito, ela diz-me que não vale de nada, eu sei, mas não controlo. A entrevista foi rápida..e eu queria tanto conversar, aproveita aquele momento que é uma oportunidade quase única...mas as palavras não saem, não sei o que dizer, mais uma vez. Volto para o meu lugar, desta vez mais longe dos xamãs e do lado oposto ao anterior...espero conseguir levantar-me para não ter de ir de gatas até lá durante a cerimónia. A R. comprou um perfume feito pela xamã, disse-me para eu pôr um pouco que me iria acalmar...e o certo é que adormeci durante uma horinha. Estou mais calma. 
Estamos á espera que o sol se deite...e seja o que o Universo quiser.

Distribuíram os precisos aliados, os vasos. Entre 20, distribuídos aleatoriamente está o único branco que me calhou da outra vez...déjà vu?.. já não me sinto tão só;)

A sala está preparada, desta vez com mais rituais que da outra. Está na hora.
Intenção, recordar com todos os sentidos o seu sabor. Here we go...
Olhos, muitos olhos á minha volta, todos a olhar para mim, olhos de animais, pessoas, personagens de BD...ora isolados, ora todos juntos. Por duas vezes a longínqua sensação  de que poderia perder o controlo (gato escaldado...), tenho comigo água florida, parece milagre, volto ao primeiro esguicho. Animais muito trabalhados com peças pequeninas, brilhantes, coloridas, pedras preciosas...uma cobra...lindíssima. Ela na minha cabeça..faz-me esticar o pescoço para um lado e para o outro...suave, mas forte. Este movimento sempre que se repetiu terminou com a minha cabeça virada para baixo, para o chão, e lá estava um poço, negro, escuro, coisas feias. Pergunto-lhe "tenho mesmo de entrar aí?" Não me responde, resisto á curiosidade e ao medo, eu não queria entrar...e quando ficava escuro pedia-lhe luz, e ela dava-me. Numa fase muita informação, informação que achei importante e pensei "não me vou conseguir lembrar disto tudo!" E ela disse-me que eu não precisava de me lembrar, que ía ficar tudo registado, de algum modo, em mim. "E para que te queres lembrar? Para mostrar? Não interessa mostrar, não interessa contar, é para ti e vai ficar em ti" Numa outra fase muitos pensamentos contraditórios...muitos...Quando fui receber o ícaro vi uma menina de 2/3 anos no colo da G. Quando a E. começou a cantar baixinho vi como se fossem ervas longas e douradas a nascer, timidamente...e ondulavam debaixo de água de uma maneira suave e elegante. Num momento veio uma náusea mais forte, peguei no vaso e mantive-o no meu colo e o vaso era o tal poço negro debaixo de mim. A náusea passou.  Mais revelações que me deram que pensar...e que tenho ainda de repensar..será mesmo assim? A minha cabeça..era a de uma espécie de veado sem hastes...Algum reboliço na sala, ímpeto para ajudar..."deixa estar..não podes ajudar toda a gente". Mostrei-lhe um rosto, desenhei-o na perfeição com os olhos, primeiro sombras em cima dele que desapareceram, depois ela fez-me focar nos olhos, entrei nos olhos e vi outra vez o Universo, milhares de estrelas. Quando saí novamente pelos olhos, eles eram de um felino, um lince.
Como fazer? O que fazer? A minha intenção. De novo a frase "Só importas tu. Só tu. Tudo o resto é temporal.", ela disse-me "O tempo não existe, foca-te no agora, a cada momento. É tudo o que existe."
Vi-me inteira. 
Disse-me também que eu tb era responsável por espalhar energias más, quando partilho coisas más, sentimentos maus, meus, aqui no blogue, quem os lê fica de algum modo com essa energia, é influenciado pelo que lê. (pfff...faz todo o sentido, mas conseguirei eu deixar de o fazer? :/ )
Ao tirar e tentar arrumar os ganchos do cabelo na carteira chegamos á bela conclusão : ás vezes não é o grande que segura o pequenino, mas sim o pequenino segura o grande. Obrigada, chego ao fim a rir-me comigo e com ela desta brilhante lição.

Na partilha dizem-me: "Quando há um poço negro, se não há resposta á questão se é para entrar lá ou não e porque não é para entrar"

"O presente é um equilíbrio entre ser actor e espectador" disse a planta a um dos participantes.


01.06.2013
Desta vez começou pelo meu lado. Intenção. Bebi. Ainda não tinham apagado as luzes já estava a senti-la subir-me á cabeça, a visão a ficar turva. Pouco depois de apagarem as luzes senti que já estava a começar a perder o controle. Muitas coisas negras e feias á minha volta, escuridão, caveiras de pessoas e animais a olharem para mim. A purga. A purga que não vinha só do meu estômago, vinha de toda eu, enquanto vomitava via cobras e lagartos negros e viscosos a saírem da minha boca. Imediatamente após senti algum alívio que pouco depois se voltou a transformar em desespero, uma luta em vão para não ir para aquele sitio escuro, cheio e feio para onde ela insistentemente me arrastava.Pedi-lhe luz, mas não me deu. O corpo inerte, as minhas mãos dormentes e em formigueiro constante.Pensei pedir ajuda, respirava fundo para me tentar manter "cá", não queria chegar ao ponto em que cheguei na minha segunda cerimónia...voltei a inspirar  e pensei "amanhã não posso beber..." Negro, apercebi-me que alguém tinha pedido ajuda á xamã...eu também queria pedir..mas..."peço, não peço? não estou nada bem, mas há quem esteja pior..peço? não peço?" Negro. Negro. Sombras esvoaçavam pela sala..uma energia pesadíssima, a roçar no insuportável, á minha volta, em mim. Tinha medo que ainda piorasse mais. Depois de ela ajudar a outra pessoa, ainda meia a hesitar, chamei-a. Depois de sacudir um ramo de folhas nas minhas costas e no meu peito soprou-me. E quando soprou, vi-a como uma espécie de fada, lindíssima e pacífica, cheia de cores e o seu sopro era também cheio de cores, muitas e vivas.Inspirei o perfume da sua mão. Acalmou-me um pouco, fiquei mais focada, a planta continuava a mostrar-me coisas escuras...mas não tão fortes...e quando, finalmente, começaram os ícaros as visões começaram, lentamente, a ganhar cor. Encostei-me para trás, estava a acalmar...

Fiquei bem...e ria-me, a planta ria-se em mim e comigo...do meu desespero há minutos atrás. Os contrastes..como ela pode ser um terrível monstro e indescritivelmente maravilhosa. Como uma mulher absolutamente sedutora e extremamente perigosa...Como é tão difícil encontrar um equilibrio entre esta realidade e a realidade onde ela nos leva; e lá, um equilíbrio entre o negro e as cores...e com ela manter uma atitude humilde enquanto lhe tento dar indicações para o que quero que me ajude. Deixar-me ir...e manter o controlo. Um autêntico labirinto de linhas ténues...e eu que sempre fui tão desorientada!
Tentei estabelecer um diálogo com ela, mas não consegui, era como se estivesse a brincar comigo, uma criança inquieta...mostrava-me imagens e elas fluíam, ondulavam...plantas e água. Havia um monólogo meu. Numa fase era como se estivesse dentro de água, a água entrava-me pela boca e os meus pulmões estavam a adaptar-se a respirar dentro de água...com calma, sem sofrimento algum..uma nova etapa. Bocejei muitas vezes. Chegou a altura do meu ícaro...achei-o muito bonito, como um abraço que me acolhia e aconchegava.
Adormeço... focada nos pirilampos verdes a voar na noite escura,  estrelas cadentes no meio da floresta.


02.06.2013
Acabei agora, 2h antes da minha última cerimónia, de reler o livro que me escolheu naquela entediada tarde no quiosque do aeroporto. Ainda me falta uma, não sei o que me espera, mas já sinto vontade de repetir este encontro milagroso com esta poderosa e imprevisível mestre. Sim, ainda ontem á noite, pouco tempo depois de começar a cerimónia disse para mim mesma "amanhã não bebo", mas por mais fundo que se vá, no outro dia parece que tudo não passou de um sonho...ou de um pesadelo. É bom ir, mas é bom voltar. Amanhã volto para a minha vida dita "normal", com dois dias fundamentais de descanso antes de voltar á agitação e stress do trabalho. Espero estar com os pés assentes na terra, o coração aberto, cheio e seguro para enfrentar a vida lá fora e com a cura em processo em todas as minhas células. Ainda não acabou... mas quero já agradecer esta oportunidade maravilhosa de poder ir mais além, além de mim, além do que racionalmente conheço e vejo no dia-a-dia. Sentindo ou não, como a autora diz no livro, vou certamente com mais cura no corpo, espírito e coração.
Here we go...

21h
Ajoelhar, intenção, beber. Desta vez menos quantidade...uma noite mais suave para fechar o processo. Enquanto não apagam a luz fico a observar e sorrio por dentro quando vejo a "cara feia" que os xamãs fazem logo depois de beber, mesmo depois de tantas cerimónias...deve se mesmo impossível habituar-se àquele sabor. Começaram a cantar os ícaros pouco tempo depois..inicialmente em sopro..fica tão bonito, não sei pôr em palavras. Fechei os olhos para ver. Primeiro algumas imagens escuras, mas nunca completamente escuras...sempre com riscos e fios de cor que foram aumentando e acabando por colorir tudo o resto. Abri os olhos, senti o meu corpo a vibrar. Sentia-me bem. Não eufórica ou cheia de amor...sentia-me em paz. Apercebi-me que a xamã não estava bem...pedi á planta para ser mais branda com ela...pedi á fada para lhe ir soprar cores.
Estava mortinha que me chamassem para o ícaro. Levei a minha água de flores e mantive-me o mais atenta possível ao ícaro e tentei manter os olhos abertos..mas é tão bom estar de olhos fechados...Em alguns momentos vi luzes brancas a brilharem dentro do meu frasco de perfume. Ao regressar ao meu lugar fiquei extasiada a olhar para as árvores e o céu estrelado lá fora..que grandeza..que poder! Estava com muita vontade de ir lá fora sentir aquela paisagem deliciosa de mais perto..que na sala estava mesmo atrás de mim. Tinha de esperar pelo fim da cerimónia, sei que era perigoso e não queria correr o risco. Esperei. Enquanto ainda sentia o efeito dela em mim tentei novamente estabelecer diálogo que mais uma vez se transformou em monólogo...e pensei "bem..ajuda-me, mas não me tires os "filtros" senão vou ser uma grande chata". Os efeitos foram passando, fiquei a ouvir os ícaros e a observar o ambiente á minha volta. No final cantaram um para o outro..para se "limparem" suponho...há tanta coisa boa e má que não vemos com 'estes' olhos...Eles são uma espécie de guia turístico, que depois de nos explicarem algumas coisas importantes  nos dão um tempo livre para explorarmos o local por nossa conta, com hora de reencontro marcada e ficam..de longe..de olho em nós.
Mal acenderam a vela agasalhei-me e fui lá fora mergulhar um pouco na noite perfeita...as árvores ao longe, o céu estrelado, o tanque, o som das rãs e da água a cair. Mais uma vez num cenário digno de filme, num misto de nostalgia, cansaço e paz.

Mais uma vez, obrigada.