sexta-feira, 12 de março de 2010

Prefácio para um livro de poemas

"Conheci um homem que possuía uma cabeça de vidro. Víamos - pelo lado menos sombrio do pensamento - todo o sistema planetário. Víamos o tremelicar da luz nas veias e o lodo das emoções na ponta dos dedos. O latejar do tempo na humidade dos lábios. E a insónia ,com seus anéis de luas quebradas e espermas ressequidos. As estrelas mortas das cidades imaginadas. Os ossos (tristes) das palavras. A noite cerca a mão inteligente do homem que possui uma cabeça transparente.Em redor dele chove. Podemos adivinhar uma chuva espessa, negra, plúmbea.Depois, o homem abre a mão, uma laranja surge,esvoaça. As cidades(como em todos os livros que li) ardem. Incêndios que destroem o último coração do sonho. Mas aquele que se veste com a pele porosa da sua própria escrita olha, absorto, a laranja. A queda da laranja provocará o poema? A laranja voadora é ,ou não é,uma laranja imaginada por um louco? E um louco, saberá o que é uma laranja? E se a laranja cair? E o poema? E o poema com uma laranja a cair? E o poema em forma de laranja? E se eu comer a laranja, estarei a devorar o poema? A ficar louco?(...)E a palavra laranja existirá sem a laranja? E a laranja voará sem a palavra laranja? E se a laranja se iluminar a partir do seu centro, do seu gomo mais secreto, e alguém a (esquecer) no meio da noite - servirá(o brilho)da laranja para iluminar as cidades há muito mortas? E se a laranja se deslocar no espaço-mais depressa que o pensamento, e muito mais devagar que a laranja escrita-criará uma ordem ou um caos? O homem que possui uma cabeça de vidro habita o lado de fora das muralhas da cidade. Foi escorraçado. (E)na desolação das terras, noite dentro, vigia os seus próprios sonhos e pesadelos. Os seus próprios gestos - e um rosto suspenso na solidão. Onde mora o homem que ousou escrever com a unha na sua alma, no seu sexo, no seu coração? E se escreveu laranja na alma, a alma ficará saborosa? E se escreveu laranja no coração, a paixão impedi-lo-á de morrer? E se escreveu laranja no sexo, o desejo aumentará? Onde está a vida do homem que escreve, a vida da laranja, a vida do poema - a Vida, sem mais nada - estará aqui?Fora das muralhas da cidade? No interior do meu corpo? ou muito longe de mim - onde sei que possuo uma outra razão...e me suicido na tentativa de me transformar em poema e poder, enfim, circular livremente."

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